Era uma vez um lindo príncipe por quem
todas as moças se apaixonavam. Por ele
também se apaixonou uma bruxa horrenda que
o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a
bruxa ficou muito brava. “Se não vai casar
comigo não vai se casar com ninguém mais!”
Olhou fundo nos olhos dele e disse: “Você vai
virar um sapo!” Ao ouvir esta palavra o príncipe
sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou. E
ele virou aquilo que a palavra de feitiço tinha
dito. Sapo. Virou um sapo.
Bastou que virasse sapo para que se
esquecesse de que era príncipe. Viu-se refletido
no espelho real e se espantou: “Sou um sapo.
Que é que estou fazendo no palácio do príncipe?
Casa de sapo é charco.” E com essas palavras
pôs-se a pular na direção do charco. Sentiu-se
feliz ao ver lama. Pulou e mergulhou. Finalmente
de novo em casa.
Como era sapo, entrou na escola de sapos
para aprender as coisas próprias de sapo.
Aprendeu a coaxar com voz grossa. Aprendeu a
jogar a língua pra fora para apanhar moscas
distraída. Aprendeu a gostar do lodo. Aprendeu
universo. Foi aluno bom e aplicado. Memória
excelente. Não se esquecia de nada. Daí suas
notas boas. Até foi o primeiro colocado nos
exames finais, o que provocou a admiração de
todos os outros sapos, seus colegas, aparecendo
até nos jornais. Quanto mais aprendia as coisas
de sapo, mais sapo ficava. E quanto mais
aprendia a ser sapo, mais se esquecia de que
um dia fora príncipe. A aprendizagem é assim:
para se aprender de um lado há que se
esquecer do outro. Toda aprendizagem produz o
esquecimento.
O príncipe ficou enfeitiçado. Mas feitiço –
assim nos ensinaram na escola – é coisa que
não existe. Só acontece nas estórias de
carochinha.
Engano. Feitiço acontece sim. A estória diz a
verdade. Feitiço: o que é? Feitiço é quando uma
palavra entra no corpo e o transforma. O
príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa
falou. Seu corpo ficou igual à palavra.
A estória do príncipe que virou sapo e a
nossa própria estória. Desde que nascemos,
continuamente, palavras nos vão sendo ditas.
Elas entram no nosso corpo, e ele vai se
transformando. Virando uma outra coisa,
diferente da que era. Educação é isto: o
processo pelo qual os nossos corpos vão ficando
eu: eu sou as palavras que os outros plantaram
em mim. Como o disse Fernando Pessoa: “Sou o
intervalo entre o meu desejo e aquilo que os
desejos dos outros fizeram de mim”. Meu corpo
é resultado de um enorme feitiço. E os
feiticeiros foram muitos: pais, mães,
professores, padres, pastores, gutas, líderes
políticos, livros, TV. Meu corpo e um corpo
enfeitiçado: porque o meu corpo aprendeu as
palavras que lhe foram ditas, ele se esqueceu
de outras que, agora permanecem mal ...
ditas...
A psicanálise acredita nisso. Ela vê cada
corpo como um sapo dentro do qual está um
príncipe esquecido. Seu objetivo não é ensinar
nada. Seu objetivo é o contrário: des-ensinar ao
sapo sua realidade sapal. Fazê-lo esquecer-se do
que aprendeu, para que ele possa lembrar-se do
que esqueceu. Quebrar o feitiço. Coisa que até
mesmo certos filósofos (poucos) percebem. A
maioria se dedica ao refinamento da realidade
sapal. Também os sapos se dedicam à filosofia...
Mas Wittgenstein, filósofo para ninguém botar
defeito, definia a filosofia como uma “luta
contra o feitiço” que certas palavras exercem
sobre nós. Acho que ele acreditava nas estórias
de carochinha...
Tudo isso apenas como introdução à
enigmática observação com que Barthes
encerra sua descrição das metamorfoses do
educador. Confissão sobre o lugar onde havia
chegado, no momento de velhice. “Há uma
idade em que se ensina aquilo que se sabe.
Vem, em seguida, uma outra, quando se ensina
aquilo que não se sabe. Vem agora, talvez, a
idade de uma outra experiência: aquela de
desaprender. Deixo-me, então, ser possuído
pela força de toda vida viva: o esquecimento...”
Esquecer para lembrar. A psicanálise
nenhum interesse tem por aquilo que se sabe. O
sabido, lembrado, aprendido, é a realidade
sapal, o feitiço que precisa ser quebrado.
Imagino que o sapo, vez por outra, se esquecia
da letra do coaxar, e no vazio do esquecimento,
surgia uma canção. “Desafinou!” berravam os
maestros. “Esqueceu-se da lição”, repreendiam
os professores. Mas uma jovem que se
assentava à beira da lagoa juntava-se a ele,
num dueto... E o sapo, assentado na lama,
desconfiava...
“Procuro despir-me do que aprendi”, dizia
Alberto Caeiro. “Procuro esquecer-me do modo
de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta
com que me pintaram os sentidos,
desencaixotar minhas emoções verdadeiras,
desembrulhar-me, e ser eu...”
Assim se comportavam os mestres Zen, que
nada tinham para ensinar. Apenas ficavam à
espreita, esperando o momento de desarticular
o aprendido para, através de suas rachaduras,
fazer emergir o esquecido. É preciso esquecer
para se lembrar. A sabedoria mora no
esquecimento.
Acho que o sapo, tão bom aluno, tão bem
educado, passava por períodos de depressão.
Uma tristeza inexplicável, pois a vida era tão
boa, tudo tão certo: a água da lagoa, as moscas
distraídas, a sinfonia unânime da saparia, todos
de acordo... O sapo não entendia. Não sabia que
sua tristeza nada mais era que uma indefinível
saudade de uma beleza que esquecera.
Procurava que procurava, no meio dos sapos, a
cura para sua dor. Inultimente. Ela estava em
outro lugar.
Mas um dia veio o beijo de amor – e ele se
lembrou. O feitiço foi quebrado.
Uma bela imagem para um mestre! Uma
bela imagem para o educador: fazer esquecer
para fazer lembrar!
http://www.virtual.ufc.br/cursouca/modulo_3/6994779-Rubem-Alves-A-Alegria-de-Ensinar.pdf
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