terça-feira, 12 de junho de 2012

HTC


O sapo

Era uma vez um lindo príncipe por quem


todas as  moças se apaixonavam. Por ele

também se apaixonou uma bruxa horrenda que

o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a

bruxa ficou muito brava. “Se não vai casar

comigo não vai se casar com ninguém mais!”

Olhou fundo nos olhos dele e disse: “Você vai

virar um sapo!” Ao ouvir esta palavra o príncipe

sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou. E

ele virou aquilo que a palavra de feitiço tinha

dito. Sapo. Virou um sapo.

Bastou que virasse sapo para que se

esquecesse de que era príncipe. Viu-se refletido

no espelho real e se espantou: “Sou um sapo.

Que é que estou fazendo no palácio do príncipe?

Casa de sapo é charco.” E com essas palavras

pôs-se a pular na direção do charco. Sentiu-se

feliz ao ver lama. Pulou e mergulhou. Finalmente

de novo em casa.

Como era sapo, entrou na escola de sapos

para aprender as coisas próprias de sapo.

Aprendeu a coaxar com voz grossa. Aprendeu a

jogar a língua pra fora para apanhar moscas

distraída. Aprendeu a gostar do lodo. Aprendeu
que as sapas eram as mais lindas criaturas do


universo. Foi aluno bom e aplicado. Memória

excelente. Não se esquecia de nada. Daí suas

notas boas. Até foi o primeiro colocado nos

exames finais, o que provocou a admiração de

todos os outros sapos, seus colegas, aparecendo

até nos jornais. Quanto mais aprendia as coisas

de sapo, mais sapo ficava. E quanto mais

aprendia a ser sapo, mais se esquecia de que

um dia fora príncipe. A aprendizagem é assim:

para se aprender de um lado há que se

esquecer do outro. Toda aprendizagem produz o

esquecimento.

O príncipe ficou enfeitiçado. Mas feitiço –

assim nos ensinaram na escola – é coisa que

não existe. Só acontece nas estórias de

carochinha.

Engano. Feitiço acontece sim. A estória diz a

verdade. Feitiço: o que é? Feitiço é quando uma

palavra entra no corpo e o transforma. O

príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa

falou. Seu corpo ficou igual à palavra.

A estória do príncipe que virou sapo e a

nossa própria estória. Desde que nascemos,

continuamente, palavras nos vão sendo ditas.

Elas entram no nosso corpo, e ele vai se

transformando. Virando uma outra coisa,

diferente da que era. Educação é isto: o

processo pelo qual os nossos corpos vão ficando
iguais às palavras que nos ensinam. Eu não sou


eu: eu sou as palavras que os outros plantaram

em mim. Como o disse Fernando Pessoa: “Sou o

intervalo entre o meu desejo e aquilo que os

desejos dos outros fizeram de mim”. Meu corpo

é resultado de um enorme feitiço. E os

feiticeiros foram muitos: pais, mães,

professores, padres, pastores, gutas, líderes

políticos, livros, TV. Meu corpo e um corpo

enfeitiçado: porque o meu corpo aprendeu as

palavras que lhe foram ditas, ele se esqueceu

de outras que, agora permanecem mal ...

ditas...

A psicanálise acredita nisso. Ela vê cada

corpo como um sapo dentro do qual está um

príncipe esquecido. Seu objetivo não é ensinar

nada. Seu objetivo é o contrário: des-ensinar ao

sapo sua realidade sapal. Fazê-lo esquecer-se do

que aprendeu, para que ele possa lembrar-se do

que esqueceu. Quebrar o feitiço. Coisa que até

mesmo certos filósofos (poucos) percebem. A

maioria se dedica ao refinamento da realidade

sapal. Também os sapos se dedicam à filosofia...

Mas Wittgenstein, filósofo para ninguém botar

defeito, definia a filosofia como uma “luta

contra o feitiço” que certas palavras exercem

sobre nós. Acho que ele acreditava nas estórias

de carochinha...

 Tudo isso apenas como introdução à


enigmática observação com que Barthes

encerra sua descrição das metamorfoses do

educador. Confissão sobre o lugar onde havia

chegado, no momento de velhice. “Há uma

idade em que se ensina aquilo que se sabe.

Vem, em seguida, uma outra, quando se ensina

aquilo que não se sabe. Vem agora, talvez, a

idade de uma outra experiência: aquela de

desaprender. Deixo-me, então, ser possuído

pela força de toda vida viva: o esquecimento...”

Esquecer para lembrar. A psicanálise

nenhum interesse tem por aquilo que se sabe. O

sabido, lembrado, aprendido, é a realidade

sapal, o feitiço que precisa ser quebrado.

Imagino que o sapo, vez por outra, se esquecia

da letra do coaxar, e no vazio do esquecimento,

surgia uma canção. “Desafinou!” berravam os

maestros. “Esqueceu-se da lição”, repreendiam

os professores. Mas uma jovem que se

assentava à beira da lagoa juntava-se a ele,

num dueto... E o sapo, assentado na lama,

desconfiava...

“Procuro despir-me do que aprendi”, dizia

Alberto Caeiro. “Procuro esquecer-me do modo

de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta

com que me pintaram os sentidos,

desencaixotar minhas emoções verdadeiras,

desembrulhar-me, e ser eu...”
Assim se comportavam os mestres Zen, que


nada tinham para ensinar. Apenas ficavam à

espreita, esperando o momento de desarticular

o aprendido para, através de suas rachaduras,

fazer emergir o esquecido. É preciso esquecer

para se lembrar. A sabedoria mora no

esquecimento.

Acho que o sapo, tão bom aluno, tão bem

educado, passava por períodos de depressão.

Uma tristeza inexplicável, pois a vida era tão

boa, tudo tão certo: a água da lagoa, as moscas

distraídas, a sinfonia unânime da saparia, todos

de acordo... O sapo não entendia. Não sabia que

sua tristeza nada mais era que uma indefinível

saudade de uma beleza que esquecera.

Procurava que procurava, no meio dos sapos, a

cura para sua dor. Inultimente. Ela estava em

outro lugar.

Mas um dia veio o beijo de amor – e ele se

lembrou. O feitiço foi quebrado.

Uma bela imagem para um mestre! Uma

bela imagem para o educador: fazer esquecer

para fazer lembrar!


http://www.virtual.ufc.br/cursouca/modulo_3/6994779-Rubem-Alves-A-Alegria-de-Ensinar.pdf

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